Este é um livro raro, em que rigor e imaginação se combinam de forma cada vez mais apurada à medida que se avança na leitura; um livro especialmente saboroso pelas inesperadas manobras intelectuais realizadas por Ricardo Benzaquen de Araújo em ensaios e comentários produzidos ao longo de quatro décadas. Disperso, por vezes publicado em revistas especializadas pouco acessíveis, esse material, agora apresentado cronologicamente, expõe a obra e as transformações que se operaram gradualmente no modo de produzi-la. Ricardo Benzaquen começou sua vida profissional ainda nos anos 1970, como integrante de um grupo de pesquisadores do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getulio Vargas. Era já um historiador celebrado, um jovem “prodígio”, com um nível de erudição muito acima do comum, cujo interesse se voltou, naquele momento, ao pensamento social brasileiro dos anos 1920 a 1950. Nesta coletânea – com exceção do ensaio “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”, escrito com Eduardo Viveiros de Castro –, os nove primeiros textos são trabalhos daquele período, ensaios em que mais vivamente se surpreende um sofisticado historiador das ideias, em minuciosos projetos de reconstrução analítica de obras, documentos, discursos históricos. Mas é a partir dos anos de 1990, e sobretudo após o seu livro consagrador Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30, que se observa uma mutação na sua carpintaria intelectual, uma inovação que Hans Ulrich Gumbrecht, amigo e prefaciador desta coletânea, chamou de “método Benzaquen”.
Como se sabe, um método é requisito importante para um mestre, pois com ele se ensina não exatamente um conteúdo, mas um “modo de pensar”. E Ricardo havia se tornado, por aqueles anos e até hoje, um mestre amado por alunos e colegas nas instituições em que lecionou, principalmente a PUC-Rio. Quem esteve próximo a ele, sobretudo a partir dos anos 2000, terá se beneficiado muitíssimo com a dinâmica, analiticamente potente, do seu método, da prática de remissão de textos a outros textos, em um processo de rica decifração dos sentidos que brotam dessa fricção. Os contrastes, as aproximações, as áreas de sombra que emergiam desses encontros textuais levavam o pensamento muito longe – e quem não quer voar? Tudo isso, contudo, é apenas uma das faces de Ricardo Benzaquen, pois a outra é o seu empenho como professor; a disposição em repartir tarefas para a condução de um programa de pós-graduação; a dedicação ilimitada com que se atirava ao papel de orientador. Nos seus últimos dez anos de vida, ao lado de tudo isso, encontrou um novo interesse pela pesquisa, atraído pelas “flutuações espirituais” de Joaquim Nabuco. Esta coletânea contou com o trabalho dos grandes amigos de Ricardo: na organização dos textos, no prefácio de Hans Gumbrecht, no posfácio de Luiz Costa Lima. Sua destinação é o espaço público acadêmico, o debate sobre o pensamento, a rica tradição das Humanidades em que Ricardo ancorava as vicissitudes brasileiras. Um livro apaixonante e necessário; asas, em tempos brutos.
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